Marchas: discutindo a relação [Metralhadas do Kamikaze]


Foi ainda em abril, mas justamente enquanto eu perguntava a opinião do Júlio sobre o tema a ser finalmente abordado hoje, que partiu o convite para eu contribuir com uma coluna quinzenal para o Auto REALIDADE.




Em alguns segmentos, como o dos sedãs médios, o câmbio manual é cada vez mais relegado a um segundo plano, embora persista para atender sobretudo àquela minoria dentre o público-alvo que ainda tem algum temor quanto à manutenção de um automático, objeções contra prejuízos ao desempenho e à economia de combustível (problemas cada vez mais atenuados nas novas gerações, diga-se de passagem), ou simplesmente ainda alegue preferir "ter mais controle" como é o caso da minha avó materna que odeia câmbio automático tão visceralmente quanto eu odeio desarmamentistas. Pois bem, modelos como o Toyota Corolla e o Nissan Sentra atualmente contam com 6 marchas nas respectivas versões de câmbio manual, mas a meu ver o escalonamento visando uma pegada mais "esportiva" acaba não fazendo tanto sentido diante da penetração desses modelos junto a segmentos tidos no mercado brasileiro como "nobres".


No caso particular do Sentra, hoje na sétima geração mundial, considero oportuno recordar a terceira geração, última a ser oferecida com um câmbio manual de 4 marchas como alternativa mais em conta ao de 5 que então se firmava como padrão no segmento. Em testes oficiais conduzidos pela Agência de Proteção Ambiental (EPA) americana, eram atribuídas médias de consumo na faixa de 10 km/l em percurso urbano e 13,2 km/l em rodovia para as versões com motor 1.6L a gasolina e câmbio manual de 4 marchas, contra 10 km/l e 14 km/l com o câmbio de 5 marchas, embora tais classificações sejam muito contestadas por proprietários que, em condições reais de uso alheias ao pouco apurado protocolo dos testes da EPA, acabam alcançando uma maior economia de combustível com o câmbio de 4 marchas.


Pode-se atribuir inicialmente à quase imperceptível redução de peso e aos menores atritos internos no câmbio resultantes da ausência de uma 5a marcha um ponto favorável à eficiência geral, mas há outros fatores que podem ser até mais decisivos como o escalonamento das marchas e a redução final do diferencial. Para quem é pouco familiarizado ao funcionamento de um câmbio, a grosso modo esses valores resultam da relação entre o número de dentes da engrenagem de cada marcha e das duas principais engrenagens do diferencial (coroa e pinhão). De qualquer maneira, como a oferta dos sedãs médios de fabricantes japoneses por aqui já vinha orbitando o mercado americano, também fomos direcionados à percepção de uma maior quantidade de marchas como algo indiscutivelmente melhor...


Outro caso peculiar é o dos Volkswagen com motor traseiro: da Kombi ao Karmann-Ghia, ainda que as carcaças dos câmbios fossem muito semelhantes por fora, ao longo do tempo houve uma grande variedade de relações disponíveis para cada marcha, bem como conjuntos de diferencial, visando não apenas atender aos diferentes fatores de carga aos quais cada modelo estaria submetido mas também possibilitar um melhor aproveitamento do que cada motor tinha a oferecer, além de inúmeras opções oferecidas pelo mercado de preparação para atender às mais variadas demandas, sendo possível ir desde um conjunto com relações mais próximas (close-ratio) para um feeling mais "esportivo" a outro com maior espaçamento entre as marchas (wide-ratio) de modo a permitir um bom equilíbrio diante das diferentes condições de rodagem que possam ser encontradas não apenas numa pista de competição mas também em trânsito urbano e rodoviário.


Cabe mencionar ainda que o mesmo câmbio dos Volkswagen de motor traseiro ainda podia ter o sentido de rotação facilmente invertido ao montar a coroa do diferencial no lado direito ao invés do esquerdo quando visto por trás, o que viabilizou o uso da mesma carcaça básica também na primeira geração da Kombi mesmo com o uso de caixas-satélite nas pontas de eixo para aumentar a redução final.


Tal característica acabou sendo aproveitada também ao adaptar o mesmo câmbio para aplicação nos primeiros modelos com motor dianteiro da marca como o Passat, diminuindo o custo de desenvolvimento do projeto.


Outra característica apreciada no antigo câmbio de 4 marchas da Volkswagen era a maior resiliência a condições de uso severo, desde a combinação do ambiente rigoroso no deserto e a negligência dos motoristas enfrentada pelo Passat LSE exportado regularmente ao Iraque até a inexperiência de muitos consumidores americanos diante do câmbio manual de um modo geral quando o Voyage era enviado à terra do Tio Sam, rebatizado como Fox e servindo de alternativa mais em conta ao Golf alemão. Vale lembrar que na mesma época o câmbio manual de 5 marchas já era opcional no Brasil para ambos os modelos...


Para o americano médio, considerado um tanto "preguiçoso" por estar habituado a uma presença maciça do câmbio automático em todos os segmentos do mercado automotivo, a eventual "obrigação" de encarar o câmbio manual em versões pé-de-boi de modelos como o Hyundai Excel e o Toyota Tercel era considerada quase um sacrifício em nome da economia de combustível, e assim a opção por 4 marchas ao invés de 5 soava atraente. Os pães-duros de plantão ainda podiam apontar que, por não ficar caçando marcha com tanta frequência, a durabilidade do conjunto de embreagem tornava-se mais longa, diminuindo os gastos com reposição de peças ao longo da vida útil do veículo...


Durante a década de '90, com o ciclo de testes da EPA começando a favorecer os câmbios manuais close-ratio em oposição aos wide-ratio, fazia mais sentido para os fabricantes oferecerem essa opção, e como as relações das marchas normalmente eram mais longas se fazia necessário encurtar a do diferencial para manter alguma agilidade nas arrancadas e retomadas, tendo na maior quantidade total de marchas uma alternativa para tentar manter faixas de rotação mais contidas em velocidade de cruzeiro. Tal característica desagrada a muitos usuários que procuram o câmbio manual apenas em virtude do menor consumo em comparação a um automático, mas faz a alegria de quem se deixa influenciar por modismos de gosto duvidoso e eficácia técnica questionável E se ainda assim algum herege insistir que um Mitsubishi Eclipse ficaria "menos esportivo" caso tivesse sido oferecido com um câmbio manual de 4 marchas escalonado de forma mais correta que o de 5 originalmente usado, precisaria ser levado para um belo "exorcismo" a bordo dum esportivo clássico como o Puma GTB...


Também foi a partir da década de '90 que o mercado brasileiro passou a relegar o câmbio de 4 marchas, injustamente, à obsolescência. Na segunda metade da década, já persistia apenas na vetusta Kombi, embora pudesse atender com folga também ao então campeão de vendas Gol "bola".


Desconsiderando algumas motonetas, o último veículo de fabricação nacional a se manter em produção com câmbio manual de 4 marchas foi justamente a Kombi, que só foi sair de linha no segundo semestre de 2013. Antes da última substituição de motor ocorrida em 2006, chegou-se até a especular que a quinta marcha finalmente seria implementada, mas tanto em função do espaço mais restrito para a montagem do câmbio quanto por considerações em torno da durabilidade do conjunto ao ser submetido a uma carga mais intensa pesavam contra.


Retomando o foco para projetos atuais destinados a mercados emergentes, como o Toyota Etios, não me pareceria tão difícil justificar um câmbio manual de 4 marchas como alternativa mais barata ao de 5 atualmente usado no modelo, visto que o mesmo já tinha ocorrido em modelos de porte e faixa de cilindrada semelhante até nos principais mercados mundiais, e também traria um leve impacto na contenção dos custos de fabricação que seria até bem adequado à proposta low-budget que norteou o desenvolvimento do modelo.


De um modo geral, embora um número menor de marchas pudesse ser inicialmente associado a uma imagem de retrocesso, quando corretamente escalonadas poderiam ainda se mostrar aptas a atender desde vovós metidas a piloto de fuga num sedã médio até quem use um modelo "popular" tanto a passeio quanto a trabalho...





Sobre o autor

Daniel Girald, gaúcho de Porto Alegre, mais conhecido como Kamikaze, estudante de Engenharia Mecânica com alguma experiência anterior em mecânica automotiva e de motocicletas, contribuindo no Auto REALIDADE quinzenalmente (na primeira e na terceira sextas-feiras de cada mês) para abordar temas técnicos escolhidos mediante sugestões de leitores, ou aleatoriamente entre as novidades mais destacadas no mercado como na estréia da coluna. Defensor ferrenho da liberação do uso de motores a diesel em veículos de qualquer espécie.


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